Não flor
flor não flor
névoa não-névoa
noite-meia vem
dia raia vai-se
vem na primavera tantas vezes sonho
foi-se manhã cedo nuvem se dissolve
Wang Wei
(Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao)
quinta-feira
quarta-feira
segunda-feira
estive destinado ao árido,
todos esses anos,
estive contrapartido às vésperas,
ao ocaso do entorpecimento mais sublime.
subi às esquinas, desdobrando
os olhares e suas entrelinhas;
carrapato no amargo, no azedo,
estive destinado às transitoriedades brilhantes,
amaciado, mas nem tanto,
ao olhar invejoso e ciumento,
sobrevoando translúcido à tarde.
quando cheguei,
que espécie de bosque havia florescido
nas paredes das minhas gargantas,
desfazedor de substâncias?
a tudo que se desfaça, violento,
repentino, me inclinei
desde sempre, esses anos todos,
estive destinado ao árido.
sábado
ouço o silêncio
barulhento de minhas próprias escolhas,
em vozes de súbito
organismos, por outra senda
que caminho igualmente
distraído.
devagüado por horas,
sou a colcha de retalho
de suas palavras,
fui a força do
invisível,
mas onde busco
encontro a …
os voos do trompete, as
flores do mal,
as veredas:
minha quebrada.
terça-feira
vagabundo incorrigível, o jabuti sonhava
encostado em uma árvore multifrutífera.
Nas suas reflexões oníricas,
era capaz de escalar-lhe até o topo, preenchendo sua sacola com uma de cada cor:
jenipapo, tangerina, maçã, jamelão...
Feito isso, abriu uma portinha no céu,
cortando-lhe o azul aguado por uma fresta inescrutável
escapou num pulo
à anti-terra, escurecida e fria, do outro lado.
Cheguei a gritar seu nome,
mas a portinha já havia desaparecido atrás dele.
Foi só depois de alguns minutos
que ele pôde acender uma vela
fazendo brilhar no horizonte um teatro de sombras.
Mas de algum modo a incandescência se espalhou
e foi como se tudo explodisse
para cair na escuridão de novo.
sábado
Clareira de sol
Mas agora não foi o inimigo que espreita montado em sua vassoura amarela,
coberto como um porco espinho com as puas do ódio;
agora entre irmãos nasceram racimos tortuosos
e desenvolveram os vinhos amargos, misturando mentira e vileza,
até preparar a suspeita, a dúvida, as acusações:
uma gelatina asfixiante de transpiração literária.
Não posso voltar a cabeça e olhar a manada perdida.
Passei entre os vivos fazendo meu ofício, e regresso à chuva
com alguns cravos e o pão que elaboram minhas mãos.
Eu busquei a bondade no bom e no mal busquei a bondade
e busquei a bondade na pedra que leva ao suplício
e encontrei a bondade na cova em que vive o falcão
e busquei a bondade na lua coberta de farinha campestre
e encontrei a bondade onde estive: esse foi meu dever na terra.
Pablo Neruda
coberto como um porco espinho com as puas do ódio;
agora entre irmãos nasceram racimos tortuosos
e desenvolveram os vinhos amargos, misturando mentira e vileza,
até preparar a suspeita, a dúvida, as acusações:
uma gelatina asfixiante de transpiração literária.
Não posso voltar a cabeça e olhar a manada perdida.
Passei entre os vivos fazendo meu ofício, e regresso à chuva
com alguns cravos e o pão que elaboram minhas mãos.
Eu busquei a bondade no bom e no mal busquei a bondade
e busquei a bondade na pedra que leva ao suplício
e encontrei a bondade na cova em que vive o falcão
e busquei a bondade na lua coberta de farinha campestre
e encontrei a bondade onde estive: esse foi meu dever na terra.
Pablo Neruda
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